Estreando nossa coluna tivemos o prazer de entrevistar os atores Rodrigo Tardelli e Allan Ralph, astros da websérie LGBT+, “Estranho Jeito de Amar” da produtora audiovisual BeraPlay Produções que já soma mais de 1 milhão de visualizações na primeira temporada no Youtube. Leia abaixo nosso papo com os artistas:
1 – Como foi o processo de transformar a ideia inicial de um curta-metragem em uma websérie, e quais desafios surgiram durante essa transição?
Rodrigo: A gente queria fazer algo mais enxuto no início, até para testar esse novo público na Bera Play. Porém, quando entendemos melhor a proposta da série e a ideia foi crescendo, tudo acabou se expandindo junto. Por isso, não dava para desenvolver tudo de forma curta. Até mesmo o formato de websérie é desafiador, porque a estrutura e o tempo de gravação tem limitações. Não conseguimos fazer tudo exatamente como queríamos, mas, no fim, o formato de websérie se mostrou o ideal para nós. Acabamos nos direcionando para aquilo que temos mais domínio, que é a websérie, e nos esforçamos ao máximo nesses quatro episódios, que inicialmente seriam três. Mas acho que o grande desafio foi contar essa história em três linhas temporais de uma maneira que o público conseguisse entender e que transmitisse a mensagem, apesar do tempo curto e da pouca estrutura disponível.
2 – A série aborda temas delicados como dependência emocional e masculinidade tóxica. Como vocês equilibraram a narrativa para garantir que esses assuntos fossem tratados com a seriedade que merecem, sem perder o envolvimento do público?
Allan – Bom, em relação à narrativa, as duas primeiras pessoas que devem ser mencionadas são o Rodrigo e o Léo. O Léo, como roteirista, e o Rodrigo, como idealizador e supervisor de roteiro. Eles foram essenciais para definir por onde e como essa história seria contada. A partir do roteiro, coube a mim e ao Rodrigo dar vida a essas palavras, para que elas pudessem emergir de forma impactante. Sem dúvida, a série levanta uma pauta extremamente necessária nos dias de hoje. Trazer essa questão de maneira cativante ou carismática não é uma tarefa fácil, mas a grande verdade é que, quando você a aborda por um lado humano, nos aproximamos dessa pauta. Perdemos aquela visão pejorativa e negativa, que é criada pela cultura e pela sociedade, de já enxergar esse tipo de comportamento com maus olhos.
Sim, deve-se olhar criticamente, mas quando vivemos esse comportamento e sentimos essas emoções, entendemos de onde isso deriva.Na perspectiva dos personagens, tanto a vítima quanto o algoz não se veem em uma circunstância onde o algoz é vilão e a vítima ali é o oprimido. Eles estão apenas sendo humanos, vivendo conforme suas capacidades e possibilidades de sobrevivência. Eles não possuem as ferramentas conscientes ou a percepção necessária para superar ou identificar a realidade em que estão inseridos. Quando tratamos esses personagens como seres humanos, com suas tentativas de fazer o melhor que podem, conseguimos alcançar o carisma. Na minha opinião, o carisma nada mais é do que a identificação com aquilo que vem de dentro, algo autêntico e não dissimulado. Acho que é nesse ponto que conseguimos equilibrar a narrativa com questões tão importantes e urgentes nos dias de hoje.
3 – Rodrigo, você mencionou que a série revela aspectos de relacionamentos que muitas vezes são normalizados. Como foi o processo criativo para inserir essas “entrelinhas” na trama de forma que o público pudesse perceber e refletir sobre elas?
Rodrigo – A gente não queria que fosse algo pesado, apesar de algumas cenas serem mais tensas, mas nada muito agressivo. Queríamos mostrar que, nos pequenos detalhes, existem coisas muito grandes e sérias acontecendo. Isso tem a ver com a normalização, porque em muitos casos as pessoas só reconhecem que estão em uma relação abusiva quando há agressão física ou algo muito extremo. Nós quisemos mostrar que, nos pequenos detalhes que muitas vezes normalizamos, já existe algo muito grave acontecendo. E é aí que ainda há tempo de sair dessa situação, a gente não precisa viver aquilo. Então, o alerta está nos detalhes, não no extremo. Foi isso que quisemos mostrar, para que a websérie não ficasse pesada ou violenta demais, sabe?
4 – Allan, você falou sobre a importância de criar diálogos em torno de questões como relacionamentos abusivos e machismo. Como você acredita que a série pode impactar o público LGBT+ e ajudá-los a identificar e combater esses comportamentos?
Allan – Na verdade, a série acaba sendo um espelho, uma possibilidade de reflexão. Já vimos a masculinidade tóxica, relacionamentos abusivos, violência médica e outras formas de toxicidade sendo abordadas de diversas maneiras e em diferentes formatos. No entanto, dentro dessa comunidade, pelo que eu conheço, não existe nenhum produto audiovisual que realmente esteja levantando essa questão.
O Rodrigo mencionou recentemente que parece ter existido uma peça de teatro que tratava do tema, o que me deixa feliz. Mas, até então, não havia um produto audiovisual que abordasse isso. Nesse sentido, acho ótimo, porque o audiovisual tem a capacidade, especialmente com uma ferramenta como o YouTube, de alcançar regiões remotas que a gente nem imagina. E, dessa forma, ele não só leva conhecimento, mas, principalmente, oferece a oportunidade de mostrar que existe uma escolha diferente daquela que a pessoa está vivendo, caso esteja em um relacionamento que se assemelhe ou que tenha traços característicos das questões levantadas pela série.
É curioso, mas ao mesmo tempo triste, porque o feedback que mais recebemos é: ‘Eu já vivi isso, eu já passei por isso, já tive relacionamentos assim.’ Muitas pessoas dizem que só se deram conta da situação quando já estavam profundamente envolvidas, sem perceber como chegaram a esse ponto. Isso é comum, assim como o meu personagem, que também não percebe que está sendo atraído para isso.
Digo que a série funciona como um reflexo. Sou terapeuta, com pós-graduação em Terapia Reichiana e Medicina Tradicional Chinesa. Do ponto de vista fisiológico, energético, emocional e psicológico, entendo que a consciência do ser humano não é criada antes da percepção. E geralmente, a percepção vem através do contraste. Como sabemos que algo é diferente de outra coisa? Porque uma coisa é de uma forma e a outra é de outra? Há uma diferença perceptível entre elas. Se não houver contraste, não há percepção, e, portanto, não há consciência de que algo é diferente.Se alguém não percebe que o que está vivendo pode ser diferente, e se está em uma situação que o machuca, não há motivação para mudar.
Mas quando a série apresenta a informação de que é possível superar uma situação opressiva e dolorosa, e que há um caminho para mudar a realidade, ela oferece uma oportunidade para a pessoa fazer esse movimento. Portanto, a série tem a capacidade de levar informação e gerar contraste, o que ajuda a criar percepção e consciência. Com base nessa consciência, cabe a cada um decidir o movimento a ser feito para sair da situação, pois a escolha é individual.
A expectativa é que a série chegue às regiões mais remotas possíveis e alcance o maior público necessário. Isso não é apenas para gerar visualizações ou buscar sucesso, mas, principalmente, para cumprir seu papel como um veículo de informação e conscientização. A ideia é que a série possa ser um recurso para que um espectador que esteja passando por uma situação similar possa assistir e, quem sabe, mudar a sua realidade. Esperamos que a série ajude quem precisa de apoio e não encontra essa informação de forma adequada no mundo ou na sociedade. Essa é a nossa esperança: que a série faça a diferença e alcance aqueles que realmente precisam.
5 – Considerando o contexto atual de maior conscientização sobre relacionamentos saudáveis, quais expectativas vocês têm em relação à recepção da série e o impacto que ela pode ter na comunidade LGBT e no público em geral?
Rodrigo: Há muitos filmes e séries que abordam relacionamentos tóxicos, mas eu ainda não conhecia um projeto que fizesse isso dentro do universo LGBT. Quando lançamos a série, recebi muitos comentários nas redes sociais, tanto no Instagram quanto no YouTube, de pessoas dizendo que precisavam de um projeto assim e agradecendo pela representatividade. Isso mostrou que havia uma carência desse tipo de conteúdo. Muitas vezes, os projetos LGBT se concentram em aspectos mais romantizados, na violência ou em pessoas que não se assumem, e queríamos ir além disso.
Nosso objetivo era oferecer um alerta e suprir essa lacuna. A série é relevante para qualquer tipo de público, independentemente do gênero ou orientação sexual, porque relacionamentos tóxicos podem acontecer em qualquer contexto. Queremos que as pessoas reflitam e se identifiquem com o conteúdo, independentemente de suas experiências pessoais. Acreditamos que o impacto da série é exatamente esse: promover uma reflexão profunda e gerar uma conscientização sobre essas questões.