O cinema brasileiro abriu 2025 com um impacto raro de se ver: O Último Azul, novo longa de Gabriel Mascaro, chega carregado de expectativa após conquistar o Urso de Prata no Festival de Berlim e se tornar um dos nomes mais comentados da temporada. O prêmio, somado ao sucesso recente de Ainda Estou Aqui no Oscar, colocou novamente os holofotes internacionais sobre o Brasil, gerando entusiasmo em torno da possibilidade de vermos o país figurar com força na próxima temporada de premiações. Mais do que um símbolo de prestígio, o filme representa a ousadia de um cinema que se arrisca em temáticas pouco exploradas, evitando fórmulas prontas e apostando em narrativas que unem reflexão social e imaginação criativa.
A maior virtude de O Último Azul é a forma como abraça o envelhecimento como tema central, mas não pelo viés do clichê. Seria fácil transformar sua protagonista em uma senhora frágil, presa a imagens tradicionais de avós ou a dramas sobre doenças terminais. Mascaro, ao contrário, transforma a velhice em motor de liberdade, construindo uma metáfora poderosa sobre o direito de viver intensamente em qualquer idade. O pano de fundo distópico só amplia essa reflexão: em um futuro próximo, idosos que chegam aos 75 anos são obrigados a se retirar para colônias habitacionais, supostamente para não se tornarem um fardo para os mais jovens. Essa ideia, que poderia soar absurda, ganha força porque dialoga diretamente com a forma como a sociedade contemporânea encara a terceira idade – muitas vezes vista como peso, descartada ou invisibilizada.
A protagonista Tereza, interpretada com maestria por Denise Weinberg, recusa-se a aceitar esse destino imposto. Seu inconformismo dá corpo a uma narrativa que denuncia não apenas o controle autoritário de um Estado distópico, mas também uma lógica social muito real: trabalhamos a vida inteira e, quando finalmente poderíamos descansar, somos tratados como descartáveis. O que poderia ser lido como ficção científica pura, na verdade, carrega ecos dolorosamente familiares, e é nesse ponto que o filme ganha potência.
Mascaro divide o roteiro com Tibério Azul, e juntos eles constroem um universo que mistura crítica social, distopia e poesia visual. Diferente de tantos títulos nacionais que se acomodam em comédias ou cinebiografias, aqui temos um filme que não teme ousar, apostando em uma ficção científica ambientada na Amazônia. Esse detalhe não é gratuito: o rio, os cenários e a natureza funcionam como símbolos de liberdade e de fluxo contínuo, em contraste com o aprisionamento das regras estatais. Há algo quase mágico na forma como a paisagem se transforma em metáfora da busca da protagonista.
Do ponto de vista estético, dois elementos se destacam, especialmente a fotografia de Guillermo Garza, que assume papel quase protagonista. No início, tons pastéis e desbotados refletem a vida monótona de Tereza, mas, à medida que ela avança em sua jornada, as cores se tornam mais saturadas, expressando vitalidade e esperança. A fotografia constrói imagens que vão além de ilustrar a narrativa, refletindo os estados emocionais do personagem. Em certos momentos, chega a se destacar, como numa cena em que Tereza conversa com uma amiga otimista: o fundo vibrante da amiga contrasta com o cenário apagado da protagonista, salvo por um tímido facho de luz — símbolo sutil de esperança. Esse recurso simples, mas simbólico, remete até à estilização de Wes Anderson, sem perder a originalidade.
O segundo destaque é a trilha sonora de Memo Guerra, que evita o caminho óbvio dos sons regionais e amazônicos. Em vez de ilustrar o ambiente, a música acompanha Tereza de forma íntima, como uma confidente, expressando suas angústias e desejo de liberdade. Ela se integra à atmosfera distópica e lírica do filme, intensificando as emoções com sutileza, sem exageros.
No elenco, o destaque vai para Denise Weinberg, que aos 70 anos entrega uma atuação magnética, combinando vigor e sensibilidade. Sua personagem não nega a velhice, mas também não se limita a ela, revelando, em nuances sutis, uma mistura de resistência e vulnerabilidade. Embora Denise sustente o filme com firmeza, o protagonismo se desloca brevemente quando Rodrigo Santoro aparece como Cadu. Sua presença intensa, embora breve, quase desvia o foco da narrativa, criando um contraste que, sem comprometer o todo, enfraquece momentaneamente a centralidade da protagonista.
O conceito das colônias habitacionais, embora recorrente como ameaça, poderia ter sido mais explorado, já que nunca é de fato mostrado. Isso não compromete a proposta, mas reduz a sensação de urgência da trama — fragmentos desse espaço poderiam intensificar o drama da fuga de Tereza. No terceiro ato, o filme também abandona parte da sutileza anterior, recorrendo a simbolismos mais explícitos e falas que explicam o que antes era sugerido. Essa mudança de tom enfraquece um pouco o desfecho, mas não diminui a força da jornada.
Apesar de alguns deslizes, O Último Azul deixa um saldo amplamente positivo. É um filme belo, inventivo e necessário, que reafirma a força do cinema brasileiro e expande seus limites ao usar a ficção científica como crítica social. A obra reforça que envelhecer não significa desaparecer e que a liberdade deve ser buscada em qualquer etapa da vida.
Denise Weinberg entrega uma de suas atuações mais marcantes, enquanto Rodrigo Santoro, mesmo com pouco tempo em cena, adiciona intensidade à trama. A fotografia e a trilha sonora criam uma atmosfera singular, e Gabriel Mascaro assina uma obra que se destaca como uma das mais relevantes do ano. O Último Azul reúne todos os elementos para representar o Brasil no Oscar — e, mais do que isso, reforça a importância de investir em narrativas ousadas, questionadoras e emocionantes.
Em um tempo em que tantos enxergam a velhice como limite, o filme nos lembra que ela pode ser, na verdade, o início de uma nova forma de liberdade. O longa chega aos cinemas brasileiros em 28 de agosto sob distribuição da Vitrine Filmes.